domingo, 11 de maio de 2014

A herança - apenas uma pequena homenagem

Apoiou os braços na cômoda e ficou na pontinha dos pés, como fazia todos os dias desde que se entendia por gente. Muito difícil controlar a ansiedade. Mal conseguia enxergar o próprio rosto no espelho, mesmo se esticando o máximo que podia. Quando afinal triscou naquele que era seu maior desejo, não se conteve e sorriu triunfante.
Lembrou da primeira vez que o viu, no colo da mãe. O encantamento foi imediato. Aquela profusão de cores deixou-a hipnotizada. Seria possível existirem tantas?

Olhou para o lado assustada. Será que a mãe sabia daquelas incursões diárias? Encolheu-se. Sentiu-se envergonhada, as bochechas ficaram vermelhas. Saiu correndo, mas, vendo-se sozinha em casa, retornou ao quarto e para o seu mister.

Puxou o objeto para si, apertou bem forte contra o peito para não deixá-lo cair e sentou-se encolhida em um canto entre o guarda-roupa e a sapateira. Abriu a tampa, mirou demoradamente cada detalhe. Fotografou cada cor, cada matiz. Passou os dedos por toda sua extensão. Sentiu as diferentes texturas misturando-se de forma quase circense em sua pele. Aspirou o perfume. Explorou cada compartimento, arregalando os olhos com a quantidade de coisas que cabia ali dentro. Alisou, mexeu, experimentou.

Transformou-se ela mesma em uma cobaia, tão concentrada em sua descoberta como se o mundo ao qual pertencesse se resumisse àquele minúsculo vão de 50cmx60cm. Apesar do breu no esconderijo, tinha convicção do que fazia. Ansiou a sua vida inteira de cinco anos por aquele instante. Torcia para que não tivesse fim. Ainda havia muita coisa para ser testada ali.

Ouviu o barulho da maçaneta. Viu-se enfim desmascarada, a mãe entrando e despejando um sermão daqueles.

Ergueu a cabeça, e a mãe apareceu de pé à sua frente. Sua fisionomia misturava indistintamente surpresa e zanga. Antes que começasse o falatório - e o carão – levantou-se, colocou as mãos nas cadeiras, fez a sua melhor cara de convencimento e, em tom de inquisição, perguntou:

- Mãe, quando você morrer, seu estojo de maquiagem vai ficar para mim de herança?

Segundos depois, estava refestelada na própria cama, curtindo plenamente a sua mais nova aquisição, com a alma tão colorida que nem o arco-íris pintado em sua face era capaz de demonstrar.

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