R$6,00 em uma
mão, um copo amarelo na outra. Precisava comprar pão e mortadela. O café quente
queimava seus dedos. Não dava tempo de esperar esfriar ou perderia a hora para
fazer unhas e cabelo, um dos poucos luxos ao qual se permitia.
Virou a esquina
e deu de cara com eles, seus algozes. Mas ainda não sabia disso. Ficou parada
com o café queimando sua pele. Teve medo de soltá-lo e assustar os
policiais. Afinal, só quem mora no morro sabe o que é ser visto como bandido. Seus
olhos se encontraram. Rápido, muito rápido. O copo, a culpa foi dele. Ouviu
aquele som, tão familiar e ao mesmo tempo tão assustador. Tiros. Qualquer coisa
pode acontecer quando tiros ecoam pelos muros da favela. As balas, tantas vezes
perdidas, por ora acham janelas. E pessoas. Sequer desconfiava que, dessa vez,
seria ela o destino do chumbo.
Logo ela,
trabalhadora e mãe de quatro filhos. Aliás, oito. Mas de barriga só quatro
mesmo. Os outros eram sobrinhos. Amava todo mundo igual. Assim como amava seu
marido, com quem estava há quase vinte anos. Hoje em dia isso é coisa rara. Não
é que a vida deles fosse fácil, mas nem por isso tinha de ser triste.
Trabalhavam muito para dar conforto aos filhos e de vez em quando fazer um
agrado. Por isso a filha usou fantasia no Carnaval. Vestiu-se de BOPE. Por isso
os gêmeos teriam sua festinha de aniversário, nem que tivesse de pedir dinheiro
emprestado. Filho seu não ficava sem bolo e parabéns. E a mais velha também haveria
de comemorar o noivado e o casamento. Depois disso, cuidaria de reformar a casa, um sonho
seu. Isso e as crianças não serem nunca confundidas com bandidos.
Sentiu uma
queimação no peito. Não entendeu bem o que era, mas viu que os policiais
apontavam as armas em sua direção. Olhou para trás, achando que poderia estar
no meio de um confronto. Não havia ninguém. Agora a fisgada foi na cabeça. Dor.
Sangue. De repente, não conseguia mais ficar em pé. Seu corpo desabou no chão
duro. Ouviu gritos. Fechou os olhos. Pegavam sua perna e sua calça. Mais tiros,
mais gritos. Ouviu risadas. Foi jogada no fundo de um carro, mas seu braço
ficou para fora. Será que não perceberam que ela estava de mau jeito? Ouviu a
palavra hospital. Sirenes, mas aquilo não era uma ambulância. Por que uma viatura?
Prisão ou socorro? Ouviu um estalo. Quando menos percebeu, estava pendurada do
lado de fora. Um, dois, cem, duzentos, trezentos e cinquenta metros. O asfalto
quente rasgava sua pele. O carro parou, e ela foi, mais uma vez, arremessada no
porta-malas. Por que não foi colocada no banco traseiro, mais confortável? Por
que fuzis e coletes eram mais importantes do que ela?
Chegou morta ao
hospital. Assassinada. Atingida por tiros – não perdidos ou trocados, mas deliberadamente
direcionados. Morreu não socorrida, jogada e arrastada. Não comeria o pão com
mortadela. A festa de aniversário dos gêmeos aconteceria sem a sua presença. Sua
filha mais velha entraria apenas com o pai na igreja. Não comemoraria bodas de
porcelana. Seria para sempre a bandida que estava dando café para os
traficantes. É, agora, apenas um número, uma estatística, um dado nos
relatórios policiais. Mais uma tragédia cotidiana. Mais um Amarildo. Mas ela
precisa dizer. Não é apenas mais uma vítima do Estado. Seu nome é Claudia Silva
Ferreira.