sexta-feira, 28 de março de 2014

O copo e o corpo

R$6,00 em uma mão, um copo amarelo na outra. Precisava comprar pão e mortadela. O café quente queimava seus dedos. Não dava tempo de esperar esfriar ou perderia a hora para fazer unhas e cabelo, um dos poucos luxos ao qual se permitia.
Virou a esquina e deu de cara com eles, seus algozes. Mas ainda não sabia disso. Ficou parada com o café queimando sua pele. Teve medo de soltá-lo e assustar os policiais. Afinal, só quem mora no morro sabe o que é ser visto como bandido. Seus olhos se encontraram. Rápido, muito rápido. O copo, a culpa foi dele. Ouviu aquele som, tão familiar e ao mesmo tempo tão assustador. Tiros. Qualquer coisa pode acontecer quando tiros ecoam pelos muros da favela. As balas, tantas vezes perdidas, por ora acham janelas. E pessoas. Sequer desconfiava que, dessa vez, seria ela o destino do chumbo.
Logo ela, trabalhadora e mãe de quatro filhos. Aliás, oito. Mas de barriga só quatro mesmo. Os outros eram sobrinhos. Amava todo mundo igual. Assim como amava seu marido, com quem estava há quase vinte anos. Hoje em dia isso é coisa rara. Não é que a vida deles fosse fácil, mas nem por isso tinha de ser triste. Trabalhavam muito para dar conforto aos filhos e de vez em quando fazer um agrado. Por isso a filha usou fantasia no Carnaval. Vestiu-se de BOPE. Por isso os gêmeos teriam sua festinha de aniversário, nem que tivesse de pedir dinheiro emprestado. Filho seu não ficava sem bolo e parabéns. E a mais velha também haveria de comemorar o noivado e o casamento. Depois disso, cuidaria de reformar a casa, um sonho seu. Isso e as crianças não serem nunca confundidas com bandidos.
Sentiu uma queimação no peito. Não entendeu bem o que era, mas viu que os policiais apontavam as armas em sua direção. Olhou para trás, achando que poderia estar no meio de um confronto. Não havia ninguém. Agora a fisgada foi na cabeça. Dor. Sangue. De repente, não conseguia mais ficar em pé. Seu corpo desabou no chão duro. Ouviu gritos. Fechou os olhos. Pegavam sua perna e sua calça. Mais tiros, mais gritos. Ouviu risadas. Foi jogada no fundo de um carro, mas seu braço ficou para fora. Será que não perceberam que ela estava de mau jeito? Ouviu a palavra hospital. Sirenes, mas aquilo não era uma ambulância. Por que uma viatura? Prisão ou socorro? Ouviu um estalo. Quando menos percebeu, estava pendurada do lado de fora. Um, dois, cem, duzentos, trezentos e cinquenta metros. O asfalto quente rasgava sua pele. O carro parou, e ela foi, mais uma vez, arremessada no porta-malas. Por que não foi colocada no banco traseiro, mais confortável? Por que fuzis e coletes eram mais importantes do que ela?

Chegou morta ao hospital. Assassinada. Atingida por tiros – não perdidos ou trocados, mas deliberadamente direcionados. Morreu não socorrida, jogada e arrastada. Não comeria o pão com mortadela. A festa de aniversário dos gêmeos aconteceria sem a sua presença. Sua filha mais velha entraria apenas com o pai na igreja. Não comemoraria bodas de porcelana. Seria para sempre a bandida que estava dando café para os traficantes. É, agora, apenas um número, uma estatística, um dado nos relatórios policiais. Mais uma tragédia cotidiana. Mais um Amarildo. Mas ela precisa dizer. Não é apenas mais uma vítima do Estado. Seu nome é Claudia Silva Ferreira.

segunda-feira, 24 de março de 2014

A carta e os moinhos de vento

Blog parado por aqui é sinal de muita movimentação na "vida real". Véspera de férias, processo acumulado, milhares de eventos... É, está difícil conciliar tanta coisa, para variar. Mas são coisas boas, que estou fazendo por prazer e por convicção. As aulas de italiano recomeçaram, estou me esforçando para pedalar com regularidade e ainda tem a academia.
Como se eu não tivesse coisa suficiente para fazer, ainda invento mais. A mais nova é uma petição pública em combate à violência contra ciclistas.
Depois de ver inúmeras postagens sobre assaltos a ciclistas em diversos pontos da cidade, não consegui me conter e tive de fazer algo mais do que simplesmente permanecer reclamando nas redes sociais. 
Numa postura talvez utópica, quem sabe ingênua, quiçá quixotesca, resolvi escrever uma carta aberta buscando soluções para o problema. Tendo em vista que o problema da violência é complexo e possui várias origens, a solução também não é simples e demanda atuação de várias áreas. Por isso não me limitei a simplesmente solicitar mais policiamento para a região. Seria temporário, seria limitado. 
Hoje temos, com certeza, um mercado de receptação, pois existem bicicletas realmente caras rodando por aí. Basta ver alguns anúncios estranhíssimos de bikes na OLX. E não sei se existe uma investigação de fato sobre para onde ou para quem vão essas bicicletas roubadas. Também é necessário que se tenha uma política de estímulo ao registro das ocorrências, de forma que se tenha uma dimensão real da quantidade de assaltos e dos locais de maior ocorrência.
Infelizmente, a mesma energia que eu tive para formular a carta aberta e criar uma petição pública não é compartilhada pela maioria das pessoas. Tudo bem que não sou uma pessoa com milhares de contatos ou super bem relacionada, mas tenho lá meia dúzia de amigos, participo de alguns grupos... Ocorre que essa minha rede de relacionamentos se refletiu em apenas 92 assinaturas até agora. Quase nada, né? Pois é. Isso sem falar nos amigos e conhecidos daqueles que assinaram e divulgaram.
A minha dúvida é apenas se as pessoas não assinam por não acreditarem, por discordarem ou por mero descaso. Nunca saberei, acho.
Para quem se interessar, basta clicar aqui para ver a petição pública. Se achar por bem assinar, deixo desde já meu agradecimento.
E se quiser ouvir a matéria e minha entrevista feita pela CBN Salvador sobre a nossa mobilização, pode clicar aqui.
Bom, quanto a mim, continuarei trabalhando pela petição enquanto achar que ela é viável. Porque posso não ter um networking de respeito, mas pelo menos mantenho meu senso do ridículo. 

sábado, 8 de março de 2014

O dia é nosso, mas o presente é de...

Dispenso as flores, os presentes e os cartões. Passo batido por todos os emails promocionais que estou recebendo hoje. Troco todos os "Feliz Dia da Mulher" e os "Parabéns pelo seu dia" por um mundo onde eu não precise me esconder sob roupas para tentar normalmente em vão não ser tratada como um pedaço de carne. Onde não haja uma estatística de que 70% das mulheres sofreram algum tipo de violência ao longo de sua vida. Ou de que 40% a 70% dos homicídios de mulheres foram cometidos por seus parceiros. Ou de que uma em cada cinco mulheres sofreu ou sofrerá uma tentativa de estupro no decorrer de sua vida. Ou ainda de que 80% das vítimas de tráfico de pessoas sejam mulheres. Para não precisar ir muito longe, quero um país em que o feminicídio não atinja a absurda marca de 5,8 mortes por 100.000 mulheres. Em que a Lei Maria da Penha atinja a sua finalidade e consiga reduzir, de fato, o número de mortes, coisa que hoje não acontece.
E deixo aqui uma música e um poema, uma homenagem a nós, que somos mulheres, que nos tornamos mulheres ou que escolhemos ser mulheres. A nós, que vivemos equilibrando papeis, sendo uma, mas sendo várias, para dar conta de tudo que nos cabe, ou que tomamos para gente, porque achamos que somente nós conseguimos dar conta. A maioria das vezes é verdade.

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado para mulher
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem
sem precisar mentir
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
Adélia Prado



quinta-feira, 6 de março de 2014

Entre conceitos e preconceitos

O que define uma pessoa? Quem é essa pessoa para mundo? Aquilo que ela é - ou pensa que é - ou o que os demais indivíduos entendem por ela? Se autodeterminar como alguém assim ou assado é suficiente para ser esse sujeito? Existe a possibilidade de ser um tipo de pessoa para si e, para os outros, mostrar-se totalmente diferente? É factível tanta disparidade entre esses dois personagens? Ou tanta dificuldade em deixar seu "eu interior" se revelar para o mundo?
E quando os estereótipos passam a definir alguém? A fazer um resumo pobre e tacanho de alguém que é cheio de riquezas e nuances? De quem é a culpa por não enxergar todos os tons e matizes entre cada adjetivo na personalidade de alguém? Daquele que insiste em se mostrar em preto e branco ou daquele que se recusa a tirar os óculos escuros?
Nessa situação, há dois perigos. O primeiro é passar a se pautar pelas constatações alheias. Fulano é lerdo, Beltrano é arrogante, Sicrano é preguiçoso. Ou seja, é vestir a fantasia e se assumir por inteiro com algo que é apenas uma fração de seu ser. Daí eu me lembrei de Gregório de Matos.
O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.

O segundo é passar a combater aquela característica que os outros usam como definição plena da pessoa, como se buscando sufocar tal faceta da personalidade, assumindo que essa é a única marca que a identifica, como se alguém pudesse ser só avarento, pavio curto, teimoso, impaciente, briguento, reclamão etc.
Ambos os caminhos parecem equivocados. Há um terceiro caminho, uma bifurcação que tangencie as duas vias? Eu não tenho respostas. Aliás, o que tenho é uma série de perguntas, afinal, estabelecer um limite entre nós e os outros é algo que exige uma precisão quase milimétrica. A chance de errar a mão são grandes. Ou seja, a busca pelo equilíbrio não tem fim. Parece que a estrada é, na verdade, uma corda bamba.