quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Eu não tenho esse direito.

Sabe aquele lugar de onde você guarda as melhores recordações? Onde você passou parte de sua infância, início de adolescência e um bom pedaço de sua vida adulta? Aquele lugar que te faz sorrir, porque você lembra da dor e da delícia de um lugar que não tinha água encanada e luz elétrica, mas ainda assim era maravilhoso, como também lembra da primeira viagem com seu marido, em que brincaram de casinha por um feriado inteirinho.
Aí, ao longo de quase 20 anos, você percebe aquele lugar mudar. Uma praça repleta de mangueiras foi tomada por casebres. Você, que tinha apenas um vizinho de cada lado do terreno, agora tem mais de 10. Onde antes imperava o silêncio, hoje reinam as músicas de qualidade duvidosa. O céu outrora tão estrelado, hoje está um pouco embaçado. A praia em que antes se podia tomar banho até sem roupa em determinadas horas do dia, hoje recebe hordas de visitantes com seus carros, aparelhos de som potentes, isopores e lixo. É claro que o progresso tem seu lado positivo. Hoje se pode comprar mantimentos, quando antigamente era necessário levar tudo que se precisasse. Hoje existe um hospital para casos de emergência. Há a luz, a água, e, com isso, o conforto do ventilador. Mal e porcamente existe o sinal de celular, que permite o isolamento e o contato na medida certa da necessidade.
Diante disso tudo, eu tive uma certa nostalgia misturada com desânimo. É como se tivesse perdido, por um instante, a vontade de ir para Pirajuía. Passou pela minha cabeça que não queria mais aquele lugarejo que ora se apresentava diante dos meus olhos. Que se não podia ter aquele lugar silencioso e bucólico, também não queria aquele lugar barulhento e sujo.
Daí que, durante esses dias do Carnaval, percebi que, mesmo não tendo mais aquele silêncio ou aquele céu de 20 anos atrás, Pirajuía ainda é um refúgio. Que apesar de o som infernal nos enlouquecer boa parte do dia, o silêncio, o som do mar, o canto dos pássaros, no restante do tempo, compensam os períodos de horror. Que as horas que passamos na rede, sem fazer nada além de olhar o mar ainda que tal paisagem seja manchada com a presença nefasta de uma barraca, descansam o corpo e a alma. Que ainda que tenhamos de nos chatear com o serviço não feito e meter mão para fazer, sempre voltamos com o espírito mais leve do que fomos. E que ainda que a praia esteja ocupada por um bando de semi-delinquentes que acham que uma barraca com banheiro, no meio do mangue, é uma ideia genial, sempre teremos a nossa prainha para nos acolher. Que ter a presença de pessoas queridas, ainda que não estejam acomodadas da melhor forma possível, faz com que esqueçamos as intempéries da ida e da volta, com o sistema de ferry boat caótico do jeito que está.
E aí, diante disso tudo, eu concluí que não tenho direito de abrir mão desse lugar. Não só por mim, mas por todos que desfrutam desse nosso pequeno pedaço de terra com uma vista belíssima do mar. Também porque eu terei filho, meus irmão provavelmente os terão também, assim como meus primos e amigos. Nós não temos direito de retirar dessas crianças a oportunidade de conhecer esse lugar. Ele pode não ser como era há 20 anos, mas há algum lugar que tenha permanecido imune ao progresso, que chega como um trator arrancando tudo, fazendo com que nos restem apenas fotografias, sentimentos e memórias, que por vezes começam a falhar?
Provavelmente essas crianças não acreditarão quando dissermos que tomávamos banho num riacho, lavávamos prato com areia e usávamos um lampião para iluminar a sala. Também não acreditarão que evoluímos para uma cisterna com uma bomba manual e uma lâmpada que era ligada na bateria do carro. Provavelmente ouvirão com descrença histórias sobre anões verdes, desdobramentos, estrelas cadentes e afins. Olharão com desprezo os poucos caretas que ainda insistem em passar de casa em casa pedindo uma contribuição para o carnaval.
Ainda assim, elas verão, daqui a alguns anos, muito mais que maioria das crianças com as quais conviverão. Verão árvores e suas frutas. Verão pássaros e seus ninhos. Verão mais estrelas do que no céu de qualquer metrópole. Verão siris e caranguejos em seu habitat, que por acaso não é a barraca de praia. Verão lagartixas, pererecas, mariposas, vaga-lumes. Verão espanta-boiadas berrando para proteger seus filhotes, em ninhos feitos à sua revelia no meio de seu terreno. Sentirão o cheiro da manga fazendo lama por que não damos conta de chupar todas elas. Verão o coco sendo tirado do pé. Afundarão o pé na lama. Voltarão para casa com as pernas lapeadas, picados de insetos, queimados do sol, mas com o coração pleno e cheio de vontade de voltar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário